sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O Poeta do Tempo: José Agrippino de Paula


Ele não figura entre as estrelas da Tropicália nem é lembrado com freqüência quando o assunto é esse movimento que virou do avesso o cenário cultural brasileiro do fim dos anos de 1960. Mas José Agrippino de Paula estava lá. A bem dizer foi um dos primeiros a chegar. E, infelizmente, um dos primeiros a sair. O escritor viveu o que se poderia chamar de auge até a década seguinte e, então, a vida desviou o caminho, roubando-lhe, com um diagnóstico de esquizofrenia, a lucidez e o contato com o mundo real. Autor de PanAmérica (1967), o livro que iluminou a cabeça de Caetano Veloso pouco antes do Tropicalismo, Agrippino passou grande parte da vida isolado em uma casa no Embu, sem rádio, televisão, telefone, nada que o conectasse a alguém ou ao que quer que fosse. Justo ele, que foi uma antena.

O jornalista e editor Sérgio Pinto de Almeida, por ocasião do lançamento da terceira edição de PanAmérica, em 2001, pela Editora Papagaio, foi um dos poucos que tiveram contato com o escritor pouco antes de sua morte, em 14 de julho de 2007. “Era triste e melancólico vê-lo naquele estado, as condições eram muito precárias”, lembra o editor, hoje responsável pelos manuscritos do autor, ?reunidos em mais de 150 cadernos. “Mas o Zé era sereno.” O restante do acervo (filmes, textos e fotos) está com a videoartista Lucila Meirelles, que dirigiu Sinfonia PanAmérica (1988), documentário sobre a obra de Agrippino.

Multimídia

Nascido em 13 de julho de 1937, no bairro da Lapa, em São Paulo, Agrippino era filho de um advogado, Oscavo de Paula, e da professora de história Claudemira Vasconcelos. Aos 20 anos, o futuro autor, na época estudante de arquitetura da Universidade de São Paulo (USP), perdeu o pai. Foi quando resolveu trocar São Paulo pelo Rio de Janeiro, onde passou a estudar na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Corria o ano de 1964, início da ditadura militar e também da obra agrippiniana.

Num quarto-e-sala do Leme, ele criou Lugar Público (1964), seu primeiro livro. Três anos depois, surgiria PanAmérica, título que o tornou um dos gurus de uma produção “de ponta” no cenário cultural brasileiro. Embora o livro seja sua produção mais conhecida, Agrippino foi um homem multimídia. Filmou, escreveu, dirigiu shows musicais e fez teatro. Dirigiu o longa Hitler Terceiro Mundo (1968), com Jô Soares no elenco e feito em plena ditadura, na total clandestinidade – embora só tenha sido exibido em 1984 no Centro Cultural São Paulo, dentro de uma mostra de cinema alternativo. “E ele foi tão esperto que quando a polícia chegou foi totalmente dobrada.
Você acredita que Agrippino convenceu os guardas a representarem a si mesmos no filme?”, diz Sérgio.

No ano seguinte, foi a vez da peça Rito do Amor Selvagem, escrita em parceria com a mulher, Maria Esther Stocker, apresentada no Teatro São Pedro, em São Paulo, com o Grupo Sondas. O espetáculo era impactante e ousado, àquela altura marcas da obra de Agrippino. Os espectadores eram recebidos no foyer, onde havia dezenas de caixas de papelão rolando pelas escadas até que, de repente, um enfermeiro cruzava o saguão arrastando um cadáver. As ações durante o espetáculo eram imprevisíveis e a única coisa certa era que em dado momento uma gigante bola de plástico cairia sobre a platéia para que, em seguida, o ator Stênio Garcia subisse no objeto e começasse uma pequena demonstração de equilibrismo. Ainda com Maria Esther, Agrippino dirigiu o show Planeta dos Mutantes (1969), que consagrou o grupo Os Mutantes, de Rita Lee, na cena roqueira da época.

Todas essas obras são consideradas pedras fundamentais na vanguarda dos anos de 1960 e 1970.

Esquizofrenia

No início dos anos de 1980, no entanto, tiveram início os problemas de saúde que retirariam o autor de cena.

Depois de constantes surtos – o escritor Ronaldo Brassane escreveu em seu blog que Agrippino era visto praticando ioga nu em Ipanema – e internações, o escritor foi diagnosticado com esquizofrenia, em 1981, época em que a Justiça o interditou e sua tutela foi entregue ao irmão, Guilherme. “Nos anos de 1980, eu passei a ver o Zé Agrippino pelas ruas de São Paulo, vagando”, declara a psicanalista Miriam Schnaiderman, filha de Boris Schnaiderman, que levou os manuscritos de Lugar Público à editora Civilização Brasileira para que fossem publicados. Em 2006, ela e o também psicanalista, músico e poeta David Calderoni foram procurar Agrippino em Embu. “Perguntamos como ele gostaria de falar dele, de contar sua história em um filme”, diz Miriam.

Agrippino pediu a câmera super 8 que tinha sido usada para filmar Hitler Terceiro Mundo e outro filme seu, Céu sobre Água (1978). A máquina só foi encontrada três meses depois, foi entregue a ele, mas o filme nunca saiu.

“Hoje, acho que no pedido de que a gente conseguisse a câmera, mais do que o desejo de filmar, tinha um pedido de que o tempo voltasse, de que a Maria Esther pudesse voltar para a vida dele”, opina a psicanalista.

“Eles se separaram no final dos anos de 1970, uma separação difícil.” Miriam e David não conseguiram o filme, mas registraram todo o processo de busca da câmera e a entrega dela a Agrippino – o vídeo, chamado Passeio ao Recanto Silvestre, pode ser visto no site de vídeos YouTube (clique aqui).

No registro, é possível ter idéia do que era a vida de Agrippino em seus últimos anos. Numa casa suja, com móveis velhos e empoeirados, ele, sempre envolto em panos, construiu um mundo, onde escrevia e cozinhava.

Um dos momentos mais comoventes da fita é quando se pergunta a Agrippino o que ele gostaria de ganhar. A resposta foi: “Cadeiras para a equipe de filmagem sentar”.

Em todas as entrevistas concedidas nos anos que antecedem sua morte, o que mais marca a fala do autor é a confusão com o tempo. Ele congelara nos anos de 1970. Numa entrevista dada à revista Trip, em 2002, chega a dizer, como se estivesse falando de hoje, que quem gostava muito de Caetano Veloso e saía com a turma dele era a mulher, Maria Esther. “Eu prefiro ir lá pros lados da Augusta encontrar o Jô e conversar sobre cinema”, diz.

“Ou então [encontrar] a Rita [Lee] e o Arnaldo [Baptista].” Na reedição de PanAmérica, em 2001, o escritor não foi à festa de relançamento do livro, realizada num sofisticado restaurante de São Paulo. Agrippino preferiu ir às duas festas feitas em uma pequena livraria do Embu. Nelas, o escritor reencontrou amigos das antigas como o artista plástico Aguilar, o pintor Antonio Peticov e Lucila Meirelles. E fez duas exigências: que tocassem Ray Coniff e fosse servido cuba libre. Ah, os anos de 1970...

Pedra Fundamental da Tropicália

Entre os acontecimentos que precederam o que veio a se chamar Tropicália, o músico e professor da Universidade de São Paulo (USP) José Miguel Wisnik lista, no texto Acordes Dissonantes pelos Cinco Mil Alto-Falantes, publicado no livro Caetano Veloso (Publifolha, 2005), o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha; a montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, pelo Oficina; o lançamento das músicas Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, e Domingo no Parque, de Gilberto Gil, no III Festival da MPB; a instalação Tropicália, de Hélio Oiticica, parte da mostra Nova Objetividade Brasileira, em cartaz no Rio; a canção Tropicália, de Caetano; e o romance PanAmérica, de José Agripino de Paula – todos esses eventos datados de 1967. O livro, no entanto, exerceu um especial fascínio sobre Caetano Veloso. Uma inspiração cuja força é expressa no prefácio escrito pelo músico para a terceira edição de PanAmérica. “Antes do lançamento de qualquer uma das canções tropicalistas, tomei contato com PanAmérica”, escreve Caetano. “O livro representava um gesto de tal radicalidade – e indo por direções que me interessavam abordar no âmbito do meu próprio trabalho –, que, como já relatei no livro de memórias Verdade Tropical (1997), quase inibiu por completo meus movimentos (...) Soa (já soava em 1967) como se fosse a Ilíada na voz de Max Cavalera.”

Em PanAmérica não há parágrafos, nem travessão. Nenhuma introdução sobre os personagens, nada.

Apenas um narrador ao lado de ícones pop, nas mais loucas situações. Só para citar algumas passagens, esse mesmo narrador faz sexo com Marilyn Monroe, transforma Gary Cooper em um cowboy na Bolívia, participa da guerrilha com Che Guevara e coloca anjos contra o Papa Paulo IV. Todos esses ícones são relidos e incorporados ao dia-a-dia, à rotina, exatamente como fez o Tropicalismo, pouco depois, com a antropofagia de Oswald de Andrade e as guitarras elétricas do rock’n’roll “gringo”. É o caso de Bat Macumba (1970), música de Caetano e Gilberto Gil e cantada pelos Mutantes. A composição brinca com o nome do homem-morcego, um herói americano, ao atrelá-lo a algo brasileiríssimo e popular: “Bat Macumba ê ê, Bat Macumba obá”.

2 comentários:

Revistacidadesol disse...

Adorei, parabéns!

Elaine de Sousa disse...

Olá, gostaria de reproduzir trechos deste texto (escrito em 2009, certo?) e preciso creditar corretamente. Como credito? abs